sábado, 18 de dezembro de 2010

A FABRICAÇÃO DA SUA PRÓPRIA REALIDADE*

Ninguém sabe quantos anos ele tem, como chegou lá, nem mesmo seu nome de nascença. Mas ele mora no CECA (Centro de Educação, Comunicação e Artes), na UEL, nos nossos corredores. Acredito que ele goste, prioritariamente, do pessoal de Comunicação – porque é lá que ele vive. Mas também soube que, frequentemente, nosso cachorro busca abrigo no Departamento de Artes Cênicas, onde é igualmente bem tratado. O pessoal do Teatro tem um tapete que, pelo visto, ele adora.

Apesar de ser conhecido de forma variada, seu nome mais comum é Juvenal. Oficialmente, aliás, é esse o nome usado pelos seguranças e trabalhadores em geral daquela área da universidade. O segundo chamamento mais usado, e cunhado pelos alunos que estavam lendo o Izidoro Blikstein*, é Kaspar Hauser. A semelhança no andar, nas paradas e no semi-autismo de quem parece não pertencer a este mundo é surpreendente, e até engraçada. Tem estudante que só o conhece como Kaspar.

Eu o chamo de Juvenal – em respeito aos seguranças, que são os verdadeiros cuidadores dele. Desde que cheguei na UEL, fui me aproximando dele e do seu Manoel, nosso segurança mais presente e que é oficialmente quem mais cuida dos cachorros do CECA. Foi ele quem me contou a história de Juvenal, abandonado na universidade (prática freqüente de quem, por algum motivo, tem problemas em manter o bicho) há ninguém sabe quantos anos. Soma mais de uma década, conforme os funcionários lembram.

E ele veio sofrendo, e sofrendo. Teve problema de pele, perdeu todos os pêlos, foi internado e quase morreu. Tudo isso em 2009. Em janeiro deste ano, Juvenal foi atacado em seu habitat por um pitbull solto na UEL. Seu Manoel me contou, com tons de herói, que arrancou uma placa de ferro da grama e meteu pancada no cachorro que atacava o nosso. Imaginem que coragem teve este homem, que deve beirar uns 65, 70 anos de idade... Por sorte, apareceu um aluno e ajudou nosso segurança a expulsar o pitbull. Levaram Juvenal para o HV (Hospital Veterinário) e, lá, ele ficou um bom tempo se recuperando. Voltou andando com ainda mais dificuldade.

Eu sempre chegava perto, conversava com ele, levava ossinhos da Shú (que ele não come, porque não tem muitos dentes) sem muito sucesso. Na verdade, Juvenal parecia só gostar dos seguranças da UEL. O cão quase rasteja só para ficar perto deles. Mas como sempre gosto de conversar com quem está lá há bastante tempo, ficava perto dele também.

Quando voltamos do recesso de julho, mais um susto: Juvenal havia sido atropelado dentro do campus. Novamente, ficou internado no HV por semanas e os boatos de que ele não voltaria foram aumentando. Mas ele não desiste: voltou bem pior, com as pernas todas tortas e o andar mais lento do mundo, mas voltou. Obviamente, ganhou um novo apelido dos estudantes: José Alencar! O serzinho não morre mesmo.

Assim que Juvenal voltou, seu Manoel entrou de licença-prêmio. Eu percebi que ele estava ficando triste e fui me aproximando. De um mês pra cá, fi-nal-men-te, ele passou a me reconhecer, parar ao meu lado, tentar me olhar com a dificuldade de levantar a cabeça, abanar o rabo quebrado para mim (que gira feito uma hélice) e até me esperou na porta do banheiro esta semana. Tenho ido mais cedo para fumar um cigarro junto com ele.

Peguei carinho pelo bichinho, pela sua história, sua força... Pensei até em trazê-lo para a minha casa, mas ele não sobreviveria fora do campus, com certeza. Pessoas mais próximas que sabem da minha relação com Juvenal tentam me preparar para sua possível morte. Mas ele surpreende a gente. Há umas poucas semanas atrás, havia uma cachorra, possivelmente no cio, que fez o velho resistente gemer, se contorcer e quase tentar alguma coisa. Isso porque ele fica uns bons minutos só para conseguir sentar e depois deitar – imaginem, só, tentar montar em uma fêmea.

Acredito, de verdade, que ele seja um ser iluminado, por assim dizer. Assim como temos homens e mulheres que tiveram uma vida especial para o mundo, tudo o que vive pode ter a mesma divindade. Histórias de cachorros que vivem pelos seus donos, nós conhecemos aos montes. Eu mesmo vivo essa realidade com a minha cã, desmedidamente apaixonada por mim. Mas Juvenal é diferente. Ele tem voracidade e amor pela vida. Porque é muito fácil ser a Shú – o difícil é viver como Kaspar Hauser.

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