terça-feira, 20 de julho de 2010

Carta ao meu pai

Ô, pai, nem posso dizer que foi embora muito cedo. 82 anos de vida é tempo suficiente para se fazer muita coisa. E você fez. Mas eu não esperava não tê-lo mais aqui. O susto da morte, definitivamente, não tem como ser antecipado.

Convenhamos que você também nunca foi um homem que inspirava muita animação. Falava da morte constantemente e até a desejava. Frágil da coluna, fumante desde uns 10 anos, não tinha mesmo como durar muito. Mas resistia. Aliás, por mais frágil que sua aparência era, tinha exames de sangue como os de um adolescente. Coração forte, sem diabetes, pressão sempre normal ou até um pouco baixa. Minha tia Nilce disse, uma das mil vezes em que você caiu doente nos últimos anos, que você iria enterrar muita gente. Mas, domingo, foi o seu funeral.

Ah, pai, te ver no caixão foi muito chocante. Parecia que você ia se levantar a qualquer momento... Reclamando, com certeza, mas levantaria. Mas você não se movia. Senti saudades daquela sua respiração difícil desta última semana, ás vezes no hospital, ás vezes em casa. Saudades de segurar sua mão, de te alimentar, de te dar água. E olha só: não me arrependo meeesmo de ter te dado o seu último cigarro. Foi na terça, não me esqueço. Ainda falante, apesar da voz fraca, pediu para a enfermeira me chamar. Quando você me disse que queria só dar uns tragos com uma bicadinha de café, eu nem pensei duas vezes.

Sei que poderia até ser presa por um ato desses, mas dispensei a Ilda, peguei os artefatos e fui para o quarto. Deixei tudo no criado-mudo, porque te colocar sentado não era fácil. Mas aquele esquema de você se encostar no meio peito para ganhar firmeza deu certo durante a semana toda. Coloquei o cigarro na sua boca, acendi e fui dando o café com seu canudinho. Difícil te ver parar de comer e beber aos poucos... Você, que tinha enorme prazer na comida. Mas ficamos juntos o tempo todo, como talvez nunca tivéssemos ficados: mãos dadas e olho no olho. E eu adorei que você negava comer com as enfermeiras; só aceitava que eu o alimentasse.

Como você ficou fraco, pai, e parece ter sido tão rápido. Talvez porque eu pensasse que você nunca morreria. Mas você morreu sábado, dia 17 de julho de 2010, às 12h55, uns 10 ou 15 minutos depois de eu sair do hospital. Passamos a manhã juntos, né? Mas você já não respondia nada. Parecia dormir e insistia em manter um pouco do olho direito aberto. Felizmente, antes de cessar o contato, você voltou um pouco para ver e “conversar” com a Mirelle na sexta, que chegou de Londrina para se despedir. Que atitude bonita, pai.

Outra coisa: percebi que você não quis morrer na minha frente, nem na frente da Mi, já que ela foi para o hospital assim que eu saí de lá, e já te encontrou sem cor. Você morreu dormindo, quando a Ilda foi ao banheiro e ao lado do único médico em que confiou na vida: Mário Hamada, um profissional de verdade porque se importa com o paciente de uma maneira abrangente. Ele cuidou de você com carinho até o final, pai. Incrível a dedicação dele - e não deixou de se despedir em seu velório.

Mas foi depois eu sair do hospital, chorando sem parar porque tentaram colocar uma sonda para te alimentar, que o mundo caiu. Cheguei na casa de vocês e a Mirelle logo desceu pra te ver. Doutor Mário ligou dizendo para a gente ir para lá, porque você estava caindo muito... Disse que a possibilidade de ir para a UTI seria agressiva – seu estado era irreversível. Desci com minha mãe correndo ligando para avisar a tia Leonor (cunhada) e tia Saída (irmã). Disseram que meu tio e primo já haviam ido para o hospital.

A parte mais triste foi esta, pai. Pelo que sei, a Mi, o tia Dua e o Du subiram juntos, mas você já estava morto. Na sequência, chegamos eu e mammy´s. E não teve cena pior do que te ver pálido e sem respirar, como todos chorando ao seu redor. E você deve ter ouvido o choro gritado da sua esposa linda, que não acreditava no que via.

Saí do quarto surtada com meu primo, também muito triste. Nos corredores do hospital, o mundo continuava normalmente – as enfermeiras correndo, os visitantes, os equipamentos... Tinha até gente rindo. Assustador pra mim. Logo veio alguém levar seu corpo para autópsia e precisávamos encaminhar para o velório. Du me ajudou e, logo que chegaram as tias com o outro primo, fui resolver tudo com o Fernando. Seus dois sobrinhos me ajudaram bastante, paizinho.

Mesmo com o Fer dando aquela força, porque eu não tinha condições para dirigir, fui eu quem decidiu a roupa que você usaria (bege, claro), seu caixão (bege, claro, e de madeira boa porque você era um cara que manjava de madeiras), a coroa, o enterro... Eu tremia e chorava na frente dos funcionários que ficavam me passando preços e perguntando seus dados – não sei como, mas eu sabia tudo de cor e salteado, pai. Também, você sempre foi tão organizadinho que deixou as coisas certas pra gente.

O velório e o enterro são capítulos à parte. Mas posso dizer que, entre sábado (quando cheguei de Londrina pra te ver achando que só passaria o final de semana) e sábado (quando você se foi), tive a pior e a melhor semana da minha vida com você. Nos encontramos de alma, meu lindo. Tivemos tantas brigas ao longo dos anos, mas eu pedi minhas desculpas e disse que você foi, sim, um grande pai. Foi o meu pai, com gênio difícil, mas que foi o amor da vida da minha mãe, e que viveu por nós. E íntegro como poucos.

Como disse a Vanessa, amiga minha de quem você tanto gostava, a morte não é opcional. É obrigatória. E você teve a maior benção de todas: morreu dormindo.
Merecido.

Vai com Deus e Jisuis Cristo, pai, como você sempre falava pra gente.

5 comentários:

Iara Krica disse...

Meus sentimentos Márcia. Tanto tempo sem escrever pra você, sem dar notícias e logo agora resolvo escrever. Acredito na filosofia espírita que diz que a morte é apenas uma passagem para outra vida e a oportunidade de reparar os erros "passados" e feliz aquele que tem a oportunidade de voltar com um novo (re) começo...
Posso te garantir que ele se foi extremamente orgulhoso de você, uma das pessoas mais incríveis que eu já conheci!
Saudades, muitas saudades de você, dos "papos", dos conselhos!

beijão

Letícia Nascimento disse...

Marcia, primeira vez que entro em seu blog e só consigo pensar que o "sinto muito" que digo de todo o coração pode parecer e ser muito pouco, mas é o que me resta falar. Não vou me estender para dizer coisas das quais não faço ideia, mas a identificação pretensiosa que tive com seu pai ao ler essa belíssima homenagem me emocionou demais e me faz pensar o quão fantástico ele foi. Espero que você esteja bem, na medida do (im)possível.

Guilherme Santana disse...

Olha...meio que fico sem palavras, uma homenagem tão justa e em paz (por deixar ele ir embora nela) são alguns pontos suficientes para começar a dissipar esse momento para o resto do mundo. A tristeza aos poucos vai-se embora e logo ficará a lembrança, só as melhores.
Meu abraço foi sincero, espero que reconfortante, já nas palavras fico devendo, mas acho que é assim mesmo quando queremos dizer algo a alguém que gostamos e sabe que as palavras não vão chegar a altura!

Anônimo disse...

Lori, eu fico me lembrando dos cigarrinhos de palha do Seu Said, dos olhares meio bravos em dire´cao aas nossas curtas mini-saias de meninas-mo´cas, dele mandando eu comer mais coalhada e kibe cru...eu acho que o bonito é perceber isso, que a morte nao leva embora as doces memórias que temos. e já que estamos morrendo a cada instante, que cada momento nao volta atrás, é isso aí: tratar de fazer tudo valer a pena para ficar como doce memória. é isso que o teu pai deixou pra mim. beijos, com amor, nas 3. Lorinha.

Alexandre, não O Grande, mas dou trabalho!!! disse...

Li e simplesmente chorei... e só...


Beijos,


Alê.