terça-feira, 27 de julho de 2010

Na Saint Martin


O difícil não é apenas perder o meu pai.

A barra, também, é perceber que sua irmã e sua sobrinha perderam pai e avô. É sentir que sua outra irmã, a downzinha da família, está perdida porque Said era a segurança – nosso pai só dormiu fora de casa quando precisou de cirurgias e hospitais.

E os dois grandes ajudantes da família, que estão conosco há quase 20 anos, vieram me perguntar se continuarão a ser nossos funcionários, já que meu pai não está mais aqui. Estão meio desorientados porque sabiam que poderiam contar com o libanês.

Também fiquei muito preocupada com a reação do meu tio e das minhas duas tias, irmãos do meu pai. Eles já haviam perdido meu tio Salim, em 1989, mas a relação com o mais velho dos irmãos era mais forte. Said foi quem criou todos, estudou todos, ajudou todos, formou todos. O tio médico está com o olhar perdido. E eu percebi que tem outras pessoas se sentindo “sem pai” além das três meninas.

Mas o difícil mesmo é ver que a minha mãe perdeu seu marido - é viúva de um homem que viveu só pra ela, que estava sempre lá, na mesma cadeira, com seus horários, seu carro, entrando e saindo daquela quadra da rua Saint Martin.

terça-feira, 20 de julho de 2010

Carta ao meu pai

Ô, pai, nem posso dizer que foi embora muito cedo. 82 anos de vida é tempo suficiente para se fazer muita coisa. E você fez. Mas eu não esperava não tê-lo mais aqui. O susto da morte, definitivamente, não tem como ser antecipado.

Convenhamos que você também nunca foi um homem que inspirava muita animação. Falava da morte constantemente e até a desejava. Frágil da coluna, fumante desde uns 10 anos, não tinha mesmo como durar muito. Mas resistia. Aliás, por mais frágil que sua aparência era, tinha exames de sangue como os de um adolescente. Coração forte, sem diabetes, pressão sempre normal ou até um pouco baixa. Minha tia Nilce disse, uma das mil vezes em que você caiu doente nos últimos anos, que você iria enterrar muita gente. Mas, domingo, foi o seu funeral.

Ah, pai, te ver no caixão foi muito chocante. Parecia que você ia se levantar a qualquer momento... Reclamando, com certeza, mas levantaria. Mas você não se movia. Senti saudades daquela sua respiração difícil desta última semana, ás vezes no hospital, ás vezes em casa. Saudades de segurar sua mão, de te alimentar, de te dar água. E olha só: não me arrependo meeesmo de ter te dado o seu último cigarro. Foi na terça, não me esqueço. Ainda falante, apesar da voz fraca, pediu para a enfermeira me chamar. Quando você me disse que queria só dar uns tragos com uma bicadinha de café, eu nem pensei duas vezes.

Sei que poderia até ser presa por um ato desses, mas dispensei a Ilda, peguei os artefatos e fui para o quarto. Deixei tudo no criado-mudo, porque te colocar sentado não era fácil. Mas aquele esquema de você se encostar no meio peito para ganhar firmeza deu certo durante a semana toda. Coloquei o cigarro na sua boca, acendi e fui dando o café com seu canudinho. Difícil te ver parar de comer e beber aos poucos... Você, que tinha enorme prazer na comida. Mas ficamos juntos o tempo todo, como talvez nunca tivéssemos ficados: mãos dadas e olho no olho. E eu adorei que você negava comer com as enfermeiras; só aceitava que eu o alimentasse.

Como você ficou fraco, pai, e parece ter sido tão rápido. Talvez porque eu pensasse que você nunca morreria. Mas você morreu sábado, dia 17 de julho de 2010, às 12h55, uns 10 ou 15 minutos depois de eu sair do hospital. Passamos a manhã juntos, né? Mas você já não respondia nada. Parecia dormir e insistia em manter um pouco do olho direito aberto. Felizmente, antes de cessar o contato, você voltou um pouco para ver e “conversar” com a Mirelle na sexta, que chegou de Londrina para se despedir. Que atitude bonita, pai.

Outra coisa: percebi que você não quis morrer na minha frente, nem na frente da Mi, já que ela foi para o hospital assim que eu saí de lá, e já te encontrou sem cor. Você morreu dormindo, quando a Ilda foi ao banheiro e ao lado do único médico em que confiou na vida: Mário Hamada, um profissional de verdade porque se importa com o paciente de uma maneira abrangente. Ele cuidou de você com carinho até o final, pai. Incrível a dedicação dele - e não deixou de se despedir em seu velório.

Mas foi depois eu sair do hospital, chorando sem parar porque tentaram colocar uma sonda para te alimentar, que o mundo caiu. Cheguei na casa de vocês e a Mirelle logo desceu pra te ver. Doutor Mário ligou dizendo para a gente ir para lá, porque você estava caindo muito... Disse que a possibilidade de ir para a UTI seria agressiva – seu estado era irreversível. Desci com minha mãe correndo ligando para avisar a tia Leonor (cunhada) e tia Saída (irmã). Disseram que meu tio e primo já haviam ido para o hospital.

A parte mais triste foi esta, pai. Pelo que sei, a Mi, o tia Dua e o Du subiram juntos, mas você já estava morto. Na sequência, chegamos eu e mammy´s. E não teve cena pior do que te ver pálido e sem respirar, como todos chorando ao seu redor. E você deve ter ouvido o choro gritado da sua esposa linda, que não acreditava no que via.

Saí do quarto surtada com meu primo, também muito triste. Nos corredores do hospital, o mundo continuava normalmente – as enfermeiras correndo, os visitantes, os equipamentos... Tinha até gente rindo. Assustador pra mim. Logo veio alguém levar seu corpo para autópsia e precisávamos encaminhar para o velório. Du me ajudou e, logo que chegaram as tias com o outro primo, fui resolver tudo com o Fernando. Seus dois sobrinhos me ajudaram bastante, paizinho.

Mesmo com o Fer dando aquela força, porque eu não tinha condições para dirigir, fui eu quem decidiu a roupa que você usaria (bege, claro), seu caixão (bege, claro, e de madeira boa porque você era um cara que manjava de madeiras), a coroa, o enterro... Eu tremia e chorava na frente dos funcionários que ficavam me passando preços e perguntando seus dados – não sei como, mas eu sabia tudo de cor e salteado, pai. Também, você sempre foi tão organizadinho que deixou as coisas certas pra gente.

O velório e o enterro são capítulos à parte. Mas posso dizer que, entre sábado (quando cheguei de Londrina pra te ver achando que só passaria o final de semana) e sábado (quando você se foi), tive a pior e a melhor semana da minha vida com você. Nos encontramos de alma, meu lindo. Tivemos tantas brigas ao longo dos anos, mas eu pedi minhas desculpas e disse que você foi, sim, um grande pai. Foi o meu pai, com gênio difícil, mas que foi o amor da vida da minha mãe, e que viveu por nós. E íntegro como poucos.

Como disse a Vanessa, amiga minha de quem você tanto gostava, a morte não é opcional. É obrigatória. E você teve a maior benção de todas: morreu dormindo.
Merecido.

Vai com Deus e Jisuis Cristo, pai, como você sempre falava pra gente.

sexta-feira, 9 de julho de 2010